A madame do funk
Num Brasil repleto de cisões, Deize Tigrona seduz os ricos e os modernos sem abandonar a favela. Mas será que os pancadões eróticos da ex-empregada doméstica realmente conseguirão diminuir a distância entre morro e asfalto?
Em meados de março, num mesmo fim de semana, dois célebres moradores de Cidade de Deus, a favela do Rio de Janeiro que quase ganhou o Oscar, estavam sob os holofotes por razões contrárias. De um lado, o rapper MV Bill mais uma vez alertava o país para um pesadelo que tira o sono de todos, mas que ironicamente parece não acordar ninguém. Exibia, em três blocos do Fantástico, na Rede Globo, o documentário Falcão — Meninos do Tráfico, que ele próprio realizou (com Celso Athayde) e que mostra o quanto o comércio de drogas se alimenta do niilismo, dos impulsos e da energia infinita de crianças e adolescentes nas comunidades pobres brasileiras. Do outro lado, a ex-empregada doméstica Deize Tigrona, musa do funk carioca que se apresenta no Skol Beats, o megafestival paulistano de música eletrônica, surpreendia-se em “uma parada supermaneira”. Uma situação que lhe ecoava como “um sonho bom”.
“Poderosa”, circulava no topo da Daslu. Àquela noite de sábado, a meca do consumo classe AA — que ocupa um prédio de 20 mil metros quadrados, com ares neoclássicos, à beira da marginal Pinheiros, em São Paulo — iria abrigar uma festa de debutante. “Festa, não”, ressaltaria Deize três semanas depois. “Festaça! Sinistra! Um negócio de novela... De cinema! Tudo impecável: a comida, a bebida, a decoração, o som, as roupas dos convidados.” Nem em “casa de madame”, onde trabalhou dos 12 aos 25 anos, a funkeira, que hoje tem 26, viu sombra de tamanha prosperidade. Como nos tempos de doméstica, Deize encontrava-se entre os bacanas “para dar duro” (“conhece gente do gueto que freqüenta o luxo sem estar a serviço?”). Só que, agora, a dureza não lhe pesava. Era leve, muito leve (“trabalhinho tranqüilo, divertidaço; um sonho bom, não disse?”). A negra de corpo bonito e miúdo subira à cobertura da Daslu para cantar — não os raps politizados de MV Bill, mas uns pancadões repletos de escracho e imagens sexuais. A aniversariante, de finíssimo trato, desejava contaminar o magnífico salão de festas com um pouco do melhor que a favela produz. Nos dias que correm, pelo menos sob a ótica da menina, o melhor é Marcelo D2, MC Leozinho e Deize Tigrona. Nada mais lógico, então, que os contratasse.
Logo após a valsa habitual, os convidados — eles, de smoking; elas, de princesas — tiraram os elegantes sapatos e, sem qualquer hesitação, calçaram os pares de havaianas que receberam da anfitriã. Puderam, assim, curtir os shows dos três artistas com o desembaraço que a ocasião pedia. Às tantas, a mãe da aniversariante resolveu cumprimentar Deize, que se preparava para entrar no palco.
— A madame sabe quem eu sou?
— Sei.
— Sabe mesmo?
— Claro!
— Sabe o tipo de música que faço?
— Sim, sim.
— Sabe que tem palavrão?
— Evidente.
— Sabe que um dos meus sucessos diz: “Pára de palhaçada/ deixa de gracinha/ eu dou pra quem eu quiser”?
— Hum, hum.
— Pensei em abrir o show com esta. A madame se ofende?
— Relaxa, garota! Você veio aqui para isso.
PEIXES GRANDES
De fato, Deize estava lá para aquilo. Ela, porém, ainda não compreende direito por quê. “Provavelmente não entenderei nunca.” Por que as rimas chulas, a coreografia libidinosa, o baticum em alto volume, as calças justíssimas, as camisetas piratas revelando barrigas morenas, os piercings vagabundos pendendo dos umbigos, coisas tão corriqueiras e admiradas na favela, subitamente passaram a seduzir os ricos? Por que, uma noite antes de agitar a Daslu, Deize animara outra festa de 15 anos, desta vez em pleno Jóquei Clube de São Paulo, também um reduto “de endinheirados”? O que o andar de cima enxerga agora na mulherzinha simples do andar de baixo, se a mulherzinha continua idêntica à época em que o andar de cima a menosprezava?
Espanta igualmente a funkeira a atenção que desperta entre “os modernos”. Que graça os habitués do Vegas, a descolada casa noturna paulistana onde se exibe com certa freqüência, vêem em hits populares como Injeção (“Injeção dói quando fura/ arranha quando entra./ Doutor, assim não dá/ minha poupança não agüenta”) ou Miniatura de Lulu (“Pelo que te conheço/ você não é grande coisa./ Seu lulu é tão pequeno/ que não roça nem as coxas”). Por que diabos apreciam Tigrona, a canção de 1997 que originou o apelido famoso de Deize Maria Gonçalves da Silva (“Eu sou a tigrona de barraca pronta/ e não vou te evitar./ Vem, vem, mano safado/ vem que eu te pego de jeito/ te deixo arriado’’)? E os curadores do Skol Beats? O que os motivou a incluir Deize num festival que levará para o Complexo do Anhembi nomes identificados com a renovação do pop, a exemplo do Prodigy e do LCD Soundsystem?
São, todas, questões que às vezes inquietam a cantora. Se ela mesma não consegue solucioná-las, o jornalista Silvio Essinger, autor do livro Batidão — Uma História do Funk (Record, 280 págs.), arrisca uma resposta: “O espaço que Deize cavou junto à elite faz parte de um movimento maior”. Desde que surgiu, em 1989, como um híbrido de outros gêneros minimalistas que tocavam nos morros e subúrbios (o electro funk, o rap e o Miami bass), o funk carioca atravessa períodos de flerte com os bem-nascidos. “Uma dessas ondas se formou por volta de 1994”, lembra Essinger. Foi quando Xuxa, que sempre adorou o pancadão, decidiu divulgá-lo. “Resultado: os jovens da zona sul correram para as baladas nas favelas.” A onda atual, avalia o jornalista, deve-se à bênção que o funk carioca tem recebido fora do país. “Inúmeros DJs e críticos estrangeiros, sobretudo nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha, o encaram como um braço criativo da música eletrônica. Tal legitimação deixa uma parcela da elite brasileira à vontade para olhá-lo de modo semelhante: menos como algo tosco, descartável, e mais como um produto de relevância cultural.”
Deize, que incendeia “os bailes de comunidade” desde os 18 anos, com certeza se beneficiou do fenômeno. Não à toa, estourou entre “os grã-finos” apenas em 2005, depois que o DJ norte-americano Diplo colou um trecho de Injeção num hit da rapper anglo-cingalesa M. I. A., Bucky Done Gun. “Mas outras personalidades do funk estão pegando a mesma onda, especialmente o DJ Marlboro e Tati Quebra-Barraco, que costumam se apresentar para públicos mais sofisticados”, acentua Essinger.
Graças à boa fase, Deize — cujo repertório soma 28 batidões — protagoniza uma média de cinco shows por semana, em diferentes pontos do Brasil. Logrou pescar “os peixes grandes” sem abrir mão “dos pequeninos”. Se hoje chacoalha numa boate nobre, amanhã rebola num ginásio de periferia. Seu cachê, que de início girava em torno dos R$ 300, agora pode atingir os R$ 10 mil. “Quer saber? Trato é de aproveitar... Pedem um show aqui? Eu faço. Pedem ali? Faço do mesmo jeito. Pagando direitinho, faço em qualquer lugar. Aliás, pagando direitinho, até volto a limpar o apartamento desses milionários todos.”
BRÓCOLIS
Quinta-feira, dia 6 de abril. Passava um pouco das 14 horas quando a equipe de BRAVO! chegou à casa de Deize em Cidade de Deus, na zona oeste carioca. “Vamos entrando, vamos entrando”, insistiu Rafael Alves de Pinho, marido da cantora. “Não recomendo dar sopa no portão. A chapa anda meio quente. Ontem à noite, teve tiroteio nas redondezas: pá, pá, pá! Uma zoeira dos infernos.” Quem atirou em quem? “Difícil afirmar. A gente não sai pela favela investigando...”
“Parrudiiiinho! Cadê o Parrudinho?” É o vira-lata da família. Estava na rua, dando sopa. “Entra também!” Na sala do sobrado ainda em construção, um Ursinho Puff, uma Branca de Neve e duas Belas Adormecidas enfeitavam um armário. Mais adiante, sobre o sofá novo, Joyce, de 3 anos, filha única do casal, obedecia aos apelos da avó materna, Laizi, que a visitava: “Feche a perninha, feche. Sente como as moças educadas”. No quarto da menina, um aviso, em letras coloridas: “Aqui dorme uma princesa”.
E a Tigrona, onde dorme? Onde afia as garras? Onde devora as caças? Afinal, nada naquele ambiente lembrava o universo frenético (e erotizado) do funk. “A Tigrona está logo ali, lavando a louça. Não morde, não. É uma gatinha...”, esclareceu Rafael, 32 anos, ex-motorista, ex-entregador de jornal, ex-cabo do Exército, ex-auxiliar de segurança, ex-motoboy e atual DJ da mulher. “Desculpe, não posso estender a mão... Molhada...”
De minissaia jeans e blusa cor-de-rosa, Deize preferiu conversar na própria cozinha. Mal falou de música. “Me amarro em lavar louça, imagina? Se dependesse de mim, não arredava o pé de casa. Ajeitava as roupas, tirava o pó, organizava a bagunça e, depois, novela! Amo vegetar em frente à televisão, sossegadona, igualzinho um brócolis.” Também gosta de família numerosa. “Já, já, arrumo um irmão para a Joyce. Eu mesma tenho oito: a Gabriela, a Viviane, a Ana Carolina, a Denise, o Alex, a Creide, o Kreiton e o Wilha.” Creide ou Cleide? Kreiton ou Kleiton? Wilha ou William? “Peraí... Mãããeee!!” Laizi, de 44 anos, largou a neta na sala e apareceu em socorro: “É Creide, Kreiton e Wilha. Qual a dúvida?”. Quando se afastou, Deize comentou: “Ela ainda trabalha de doméstica. Bebia demais, a coitada. Há cerca de um mês, parou. Ouviu os meus apelos. ‘Mãe, me sinto tão feliz... Minha vida finalmente mudou. Queria muito ajudar a senhora, mas de que maneira, se a senhora gasta cada centavo em bebida?’ Tanto martelei, tanto esperneei, que acabou me atendendo”. E como a ajuda? “Estou lhe botando os dentes. Uma alegria! Só me recordo dela sem dentes...”
Desfrutar a maré alta com prudência. Para Deize, eis o que realmente interessa. “O sucesso, o dinheiro, a bajulação da mídia, tudo evapora. O funk não vai passar nunca, mas o meu momento vai. Não sou louca de me iludir. Não vou comprar apartamentão na zona sul; lá o IPTU me destrói assim que o vento virar. Vou é terminar de construir minha casa em Cidade de Deus. Não vou comprar carro zero. Vou é arranjar um usado em boas condições. Por sinal, arranjei: um Gol 98, com quatro portas e IPVA magrinho.”
GATO PRETO
Mãe Dinah, a vidente dos programas sensacionalistas da TV, andou prevendo que as estrelas do funk irão se acidentar. “Por causa dos palavrões e do erotismo”, explicou Deize. “Uma espécie de maldição, um castigo. Acho que não acredito.” Católica, a cantora cultiva “quatro ou cinco” superstições, que herdou de Laizi. “Não caminho debaixo de escada, não brinco com gato preto, não pego o sal da vizinha, não peço vassoura emprestada, se a chave cai do bolso piso logo em cima.” Mas superstição é uma coisa, dar trela para vidente é outra. “Dizem que o funk incentiva a baixaria, que faz as meninas engravidarem. Bobagem. Pelo que me consta, a mulherada da favela sempre engravidou à beça. Só minha mãe pariu nove filhos. Tia Regina pariu seis. Tia Eliane, uns três. Tia Cristina, mais três. Tia Fátima, seis. Prima Adriana, três. Prima Luciana, dois.”
Há quem julgue que Deize devia se envergonhar das letras que compõe. “Já senti vergonha, no começo. Depois, reconsiderei: se uma porção de pessoas pula e dança ao me ouvir, vou me envergonhar do quê?”
“Sabe da maior? Ela é tímida. E muito”, confidenciou Rafael, que acabara de chegar à cozinha. “A Tigrona não existe. É apenas um personagem, que aprendeu tudo com a televisão — com as novelas, os humoristas, os filmes nacionais, a Carla Perez.” “Tudo, vírgula”, corrigiu Deize. “Uma parte aprendi com o que vejo nas ruas. Outro tanto aprendi em casa de madame.” Sério? “Trabalhando de empregada, você pode estar coberta de razão, mas se a madame cisma... Ela vai jurar que você errou, que aprontou, e você precisa relevar. Precisa ter paciência. Quando escuto desaforos contra o funk, penso nos meus tempos de doméstica e me encho de paciência. Aprendi que, um dia, a verdade aparece. Um dia, todo mundo descobre quem é que está certo...”
(revista Bravo!)
Em meados de março, num mesmo fim de semana, dois célebres moradores de Cidade de Deus, a favela do Rio de Janeiro que quase ganhou o Oscar, estavam sob os holofotes por razões contrárias. De um lado, o rapper MV Bill mais uma vez alertava o país para um pesadelo que tira o sono de todos, mas que ironicamente parece não acordar ninguém. Exibia, em três blocos do Fantástico, na Rede Globo, o documentário Falcão — Meninos do Tráfico, que ele próprio realizou (com Celso Athayde) e que mostra o quanto o comércio de drogas se alimenta do niilismo, dos impulsos e da energia infinita de crianças e adolescentes nas comunidades pobres brasileiras. Do outro lado, a ex-empregada doméstica Deize Tigrona, musa do funk carioca que se apresenta no Skol Beats, o megafestival paulistano de música eletrônica, surpreendia-se em “uma parada supermaneira”. Uma situação que lhe ecoava como “um sonho bom”.
“Poderosa”, circulava no topo da Daslu. Àquela noite de sábado, a meca do consumo classe AA — que ocupa um prédio de 20 mil metros quadrados, com ares neoclássicos, à beira da marginal Pinheiros, em São Paulo — iria abrigar uma festa de debutante. “Festa, não”, ressaltaria Deize três semanas depois. “Festaça! Sinistra! Um negócio de novela... De cinema! Tudo impecável: a comida, a bebida, a decoração, o som, as roupas dos convidados.” Nem em “casa de madame”, onde trabalhou dos 12 aos 25 anos, a funkeira, que hoje tem 26, viu sombra de tamanha prosperidade. Como nos tempos de doméstica, Deize encontrava-se entre os bacanas “para dar duro” (“conhece gente do gueto que freqüenta o luxo sem estar a serviço?”). Só que, agora, a dureza não lhe pesava. Era leve, muito leve (“trabalhinho tranqüilo, divertidaço; um sonho bom, não disse?”). A negra de corpo bonito e miúdo subira à cobertura da Daslu para cantar — não os raps politizados de MV Bill, mas uns pancadões repletos de escracho e imagens sexuais. A aniversariante, de finíssimo trato, desejava contaminar o magnífico salão de festas com um pouco do melhor que a favela produz. Nos dias que correm, pelo menos sob a ótica da menina, o melhor é Marcelo D2, MC Leozinho e Deize Tigrona. Nada mais lógico, então, que os contratasse.
Logo após a valsa habitual, os convidados — eles, de smoking; elas, de princesas — tiraram os elegantes sapatos e, sem qualquer hesitação, calçaram os pares de havaianas que receberam da anfitriã. Puderam, assim, curtir os shows dos três artistas com o desembaraço que a ocasião pedia. Às tantas, a mãe da aniversariante resolveu cumprimentar Deize, que se preparava para entrar no palco.
— A madame sabe quem eu sou?
— Sei.
— Sabe mesmo?
— Claro!
— Sabe o tipo de música que faço?
— Sim, sim.
— Sabe que tem palavrão?
— Evidente.
— Sabe que um dos meus sucessos diz: “Pára de palhaçada/ deixa de gracinha/ eu dou pra quem eu quiser”?
— Hum, hum.
— Pensei em abrir o show com esta. A madame se ofende?
— Relaxa, garota! Você veio aqui para isso.
PEIXES GRANDES
De fato, Deize estava lá para aquilo. Ela, porém, ainda não compreende direito por quê. “Provavelmente não entenderei nunca.” Por que as rimas chulas, a coreografia libidinosa, o baticum em alto volume, as calças justíssimas, as camisetas piratas revelando barrigas morenas, os piercings vagabundos pendendo dos umbigos, coisas tão corriqueiras e admiradas na favela, subitamente passaram a seduzir os ricos? Por que, uma noite antes de agitar a Daslu, Deize animara outra festa de 15 anos, desta vez em pleno Jóquei Clube de São Paulo, também um reduto “de endinheirados”? O que o andar de cima enxerga agora na mulherzinha simples do andar de baixo, se a mulherzinha continua idêntica à época em que o andar de cima a menosprezava?
Espanta igualmente a funkeira a atenção que desperta entre “os modernos”. Que graça os habitués do Vegas, a descolada casa noturna paulistana onde se exibe com certa freqüência, vêem em hits populares como Injeção (“Injeção dói quando fura/ arranha quando entra./ Doutor, assim não dá/ minha poupança não agüenta”) ou Miniatura de Lulu (“Pelo que te conheço/ você não é grande coisa./ Seu lulu é tão pequeno/ que não roça nem as coxas”). Por que diabos apreciam Tigrona, a canção de 1997 que originou o apelido famoso de Deize Maria Gonçalves da Silva (“Eu sou a tigrona de barraca pronta/ e não vou te evitar./ Vem, vem, mano safado/ vem que eu te pego de jeito/ te deixo arriado’’)? E os curadores do Skol Beats? O que os motivou a incluir Deize num festival que levará para o Complexo do Anhembi nomes identificados com a renovação do pop, a exemplo do Prodigy e do LCD Soundsystem?
São, todas, questões que às vezes inquietam a cantora. Se ela mesma não consegue solucioná-las, o jornalista Silvio Essinger, autor do livro Batidão — Uma História do Funk (Record, 280 págs.), arrisca uma resposta: “O espaço que Deize cavou junto à elite faz parte de um movimento maior”. Desde que surgiu, em 1989, como um híbrido de outros gêneros minimalistas que tocavam nos morros e subúrbios (o electro funk, o rap e o Miami bass), o funk carioca atravessa períodos de flerte com os bem-nascidos. “Uma dessas ondas se formou por volta de 1994”, lembra Essinger. Foi quando Xuxa, que sempre adorou o pancadão, decidiu divulgá-lo. “Resultado: os jovens da zona sul correram para as baladas nas favelas.” A onda atual, avalia o jornalista, deve-se à bênção que o funk carioca tem recebido fora do país. “Inúmeros DJs e críticos estrangeiros, sobretudo nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha, o encaram como um braço criativo da música eletrônica. Tal legitimação deixa uma parcela da elite brasileira à vontade para olhá-lo de modo semelhante: menos como algo tosco, descartável, e mais como um produto de relevância cultural.”
Deize, que incendeia “os bailes de comunidade” desde os 18 anos, com certeza se beneficiou do fenômeno. Não à toa, estourou entre “os grã-finos” apenas em 2005, depois que o DJ norte-americano Diplo colou um trecho de Injeção num hit da rapper anglo-cingalesa M. I. A., Bucky Done Gun. “Mas outras personalidades do funk estão pegando a mesma onda, especialmente o DJ Marlboro e Tati Quebra-Barraco, que costumam se apresentar para públicos mais sofisticados”, acentua Essinger.
Graças à boa fase, Deize — cujo repertório soma 28 batidões — protagoniza uma média de cinco shows por semana, em diferentes pontos do Brasil. Logrou pescar “os peixes grandes” sem abrir mão “dos pequeninos”. Se hoje chacoalha numa boate nobre, amanhã rebola num ginásio de periferia. Seu cachê, que de início girava em torno dos R$ 300, agora pode atingir os R$ 10 mil. “Quer saber? Trato é de aproveitar... Pedem um show aqui? Eu faço. Pedem ali? Faço do mesmo jeito. Pagando direitinho, faço em qualquer lugar. Aliás, pagando direitinho, até volto a limpar o apartamento desses milionários todos.”
BRÓCOLIS
Quinta-feira, dia 6 de abril. Passava um pouco das 14 horas quando a equipe de BRAVO! chegou à casa de Deize em Cidade de Deus, na zona oeste carioca. “Vamos entrando, vamos entrando”, insistiu Rafael Alves de Pinho, marido da cantora. “Não recomendo dar sopa no portão. A chapa anda meio quente. Ontem à noite, teve tiroteio nas redondezas: pá, pá, pá! Uma zoeira dos infernos.” Quem atirou em quem? “Difícil afirmar. A gente não sai pela favela investigando...”
“Parrudiiiinho! Cadê o Parrudinho?” É o vira-lata da família. Estava na rua, dando sopa. “Entra também!” Na sala do sobrado ainda em construção, um Ursinho Puff, uma Branca de Neve e duas Belas Adormecidas enfeitavam um armário. Mais adiante, sobre o sofá novo, Joyce, de 3 anos, filha única do casal, obedecia aos apelos da avó materna, Laizi, que a visitava: “Feche a perninha, feche. Sente como as moças educadas”. No quarto da menina, um aviso, em letras coloridas: “Aqui dorme uma princesa”.
E a Tigrona, onde dorme? Onde afia as garras? Onde devora as caças? Afinal, nada naquele ambiente lembrava o universo frenético (e erotizado) do funk. “A Tigrona está logo ali, lavando a louça. Não morde, não. É uma gatinha...”, esclareceu Rafael, 32 anos, ex-motorista, ex-entregador de jornal, ex-cabo do Exército, ex-auxiliar de segurança, ex-motoboy e atual DJ da mulher. “Desculpe, não posso estender a mão... Molhada...”
De minissaia jeans e blusa cor-de-rosa, Deize preferiu conversar na própria cozinha. Mal falou de música. “Me amarro em lavar louça, imagina? Se dependesse de mim, não arredava o pé de casa. Ajeitava as roupas, tirava o pó, organizava a bagunça e, depois, novela! Amo vegetar em frente à televisão, sossegadona, igualzinho um brócolis.” Também gosta de família numerosa. “Já, já, arrumo um irmão para a Joyce. Eu mesma tenho oito: a Gabriela, a Viviane, a Ana Carolina, a Denise, o Alex, a Creide, o Kreiton e o Wilha.” Creide ou Cleide? Kreiton ou Kleiton? Wilha ou William? “Peraí... Mãããeee!!” Laizi, de 44 anos, largou a neta na sala e apareceu em socorro: “É Creide, Kreiton e Wilha. Qual a dúvida?”. Quando se afastou, Deize comentou: “Ela ainda trabalha de doméstica. Bebia demais, a coitada. Há cerca de um mês, parou. Ouviu os meus apelos. ‘Mãe, me sinto tão feliz... Minha vida finalmente mudou. Queria muito ajudar a senhora, mas de que maneira, se a senhora gasta cada centavo em bebida?’ Tanto martelei, tanto esperneei, que acabou me atendendo”. E como a ajuda? “Estou lhe botando os dentes. Uma alegria! Só me recordo dela sem dentes...”
Desfrutar a maré alta com prudência. Para Deize, eis o que realmente interessa. “O sucesso, o dinheiro, a bajulação da mídia, tudo evapora. O funk não vai passar nunca, mas o meu momento vai. Não sou louca de me iludir. Não vou comprar apartamentão na zona sul; lá o IPTU me destrói assim que o vento virar. Vou é terminar de construir minha casa em Cidade de Deus. Não vou comprar carro zero. Vou é arranjar um usado em boas condições. Por sinal, arranjei: um Gol 98, com quatro portas e IPVA magrinho.”
GATO PRETO
Mãe Dinah, a vidente dos programas sensacionalistas da TV, andou prevendo que as estrelas do funk irão se acidentar. “Por causa dos palavrões e do erotismo”, explicou Deize. “Uma espécie de maldição, um castigo. Acho que não acredito.” Católica, a cantora cultiva “quatro ou cinco” superstições, que herdou de Laizi. “Não caminho debaixo de escada, não brinco com gato preto, não pego o sal da vizinha, não peço vassoura emprestada, se a chave cai do bolso piso logo em cima.” Mas superstição é uma coisa, dar trela para vidente é outra. “Dizem que o funk incentiva a baixaria, que faz as meninas engravidarem. Bobagem. Pelo que me consta, a mulherada da favela sempre engravidou à beça. Só minha mãe pariu nove filhos. Tia Regina pariu seis. Tia Eliane, uns três. Tia Cristina, mais três. Tia Fátima, seis. Prima Adriana, três. Prima Luciana, dois.”
Há quem julgue que Deize devia se envergonhar das letras que compõe. “Já senti vergonha, no começo. Depois, reconsiderei: se uma porção de pessoas pula e dança ao me ouvir, vou me envergonhar do quê?”
“Sabe da maior? Ela é tímida. E muito”, confidenciou Rafael, que acabara de chegar à cozinha. “A Tigrona não existe. É apenas um personagem, que aprendeu tudo com a televisão — com as novelas, os humoristas, os filmes nacionais, a Carla Perez.” “Tudo, vírgula”, corrigiu Deize. “Uma parte aprendi com o que vejo nas ruas. Outro tanto aprendi em casa de madame.” Sério? “Trabalhando de empregada, você pode estar coberta de razão, mas se a madame cisma... Ela vai jurar que você errou, que aprontou, e você precisa relevar. Precisa ter paciência. Quando escuto desaforos contra o funk, penso nos meus tempos de doméstica e me encho de paciência. Aprendi que, um dia, a verdade aparece. Um dia, todo mundo descobre quem é que está certo...”
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